Eudes Quintino de Oliveira Júnior

A vítima de estelionato na modalidade do bilhete premiado, desde o início da mise en scène, apesar de uma leve desconfiança, não percebe a fraude, ou prefere ignorá-la em razão dos benefícios prometidos.

Código Penal tipifica o crime de estelionato como sendo aquele praticado pelo agente que emprega a astúcia, o engodo, a mentira, a fraude ou outros meios que possam manter alguém em erro, com a intenção de auferir vantagem ilícita. É um delito, se assim pode ser classificado, diferenciado de todo o regramento penal, que não exige ameaça, violência ou qualquer meio intimidativo para obter o proveito pretendido. A pena é de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos e multa.

O conto do bilhete premiado, tão propalado e antigo como as loterias no Brasil, apesar de extensa divulgação pela imprensa e até mesmo pelas conversas populares, continua sendo praticado com sucesso na era da informática. Parece até difícil acreditar que uma pessoa, por mais simples que seja ou até mesmo mal informada, possa ser ludibriada por uma história fantasiosa inicialmente, mas com um trabalho perfeito de convencimento, passa a ter consistência e credibilidade.

Geralmente, entram em cena dois personagens: um, mal vestido, de aparência pouco cuidada, com mais idade, demonstrando certa ingenuidade e desconhecimento das coisas da cidade, que aborda determinada pessoa e a ela revela ser portador de um bilhete premiado, mas tem receio de ser enganado ao solicitar seu prêmio, que representa uma razoável quantia; o outro, justificando que estava bem próximo e ter ouvido toda a conversa, de forma desembaraçada e com muita iniciativa, com aparência de negociante esperto, com muita eloquência, entra em cena na sequência. Confirma o prêmio e faz ver à incauta vítima que se ela oferecer uma determinada quantia, ganhará a confiança do dono do bilhete e dele se apossará, podendo recebê-lo posteriormente em seu valor integral. Assim é feito, o dinheiro é entregue e somente após a vítima percebe a trama ardilosa.

Trata-se de uma encenação teatralizada publicamente, em que os dois agentes demonstram uma incrível facilidade de expressão de fazer inveja ao mais consagrado ator, pois sem qualquer escola, a não ser a da rua, desempenham com maestria os personagens que se propuseram. Como num passe de mágica, reduzem o poder de compreensão da vítima, invadem até a última trincheira de sua resistência, convencendo-a a entregar seus valores de forma consciente, acreditando piamente que irá receber muito mais do que entregou.

De um lado, inicialmente, o ludibriado tem receio de acreditar na proposta que é interessante e guarda certa credibilidade. De outro, é movido pela sedução de adquirir o bilhete e pela ambição do ganho fácil, deixando transparecer que a ganância cega a razão e o bom senso.

Não há dúvida que se trata de um comportamento preconcebido na mais genuína má-fé, pois os agentes, em curto prazo, conseguem ganhar a atenção da vítima, que vai se tornando presa fácil, sem forças para se manifestar e, como um autômato, vai confirmando com a cabeça sua aceitação à proposta feita e passa a cumprir rigorosamente o que foi determinado. Assim agem pelo fato de travarem um relacionamento de inteligência, visando impedir qualquer reação da pessoa durante a operação. Praticam, portanto, atos com relevantes conotações jurídicas, contribuindo ambos para o sucesso da empreitada criminosa, na mais perfeita coautoria. Dizia a história grega que Sócrates desenvolveu uma técnica que, por truques mágicos de lógica, deixava seu interlocutor tão inseguro que aceitava qualquer explicação que lhe fosse oferecida.

A vítima de estelionato na modalidade do bilhete premiado, desde o início da mise en scène, apesar de uma leve desconfiança, não percebe a fraude, ou prefere ignorá-la em razão dos benefícios prometidos. Aplica mentalmente a regra do custo e benefício. Tanto é que dialoga com os trapaceiros de forma amistosa, tem poucas condições de tempo para avaliá-los e, de uma forma muito rápida, sem mesmo que tenha oportunidade para contestar qualquer ponto da proposta, passa a aceitar a argumentação de forma consciente e, se alguma dúvida levantou, imediatamente foi dissipada pela forma polida e objetiva da conversa. Instala-se, desta forma, um clímax favorável para aplicação do golpe, vez que romperam a prudência normal e derrubaram a sagacidade mínima inerente à pessoa comum.

A vítima, somente após a aplicação do golpe, vai se recuperar e agora com a sensação total de frustração, de impotência pela sua própria conduta. Vai reprisar todo o iter criminis e irá concluir que o poder de persuasão é tão perigoso quanto o de uma arma, porém com uma sensível diferença: com a arma ocorre a coação, a intimidação, fazendo com que haja a entrega do bem; com o ludíbrio a pessoa faz parte da trama e é convencida a acreditar na veracidade de uma história fantasiosa, entregando conscientemente o que foi solicitado.

*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP. Mestre em direito público e pós-doutorado em ciências da saúde.

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