"No Brasil somente metade dos trabalhadores possui carteira assinada e isso se deve à rigidez da legislação trabalhista". Esta afirmativa, que vem sendo martelada como mantra pelos arautos da flexibilização do direito do trabalho, ganhou ares de verdade inconteste. Porém, uma análise meticulosa dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), recentemente divulgada pelo IBGE, revela que essa "verdade" é apenas o resultado de um mal-entendido repetido à exaustão, quando não fruto de convicções ideológicas preconcebidas. O pressuposto de que apenas um em cada dois trabalhadores do setor produtivo está no mercado formal de trabalho não encontra amparo nos dados da Pnad sobre emprego formal, quando os mesmos são esmiuçados. É preciso reconhecer, porém, que a forma como tais dados vem sendo apresentados pelo IBGE pode induzir o público a erros de leitura. Ao coligir os dados da Pnad sobre formalização do mercado de trabalho, o IBGE divide os trabalhadores subordinados (isto é, excluindo-se os que laboram por conta própria, como os autônomos e profissionais liberais) em quatro categorias: "trabalhadores com carteira de trabalho assinada", "militares e estatutários", "outros sem carteira de trabalho assinada" e "trabalhadores domésticos", sendo que estes últimos também são subdivididos em "com" e "sem" carteira assinada. É desse universo total que o IBGE retira o percentual de trabalhadores com carteira assinada: assim, de acordo com a Pnad 2009, 55,8% dos trabalhadores têm carteira assinada (incluindo-se os domésticos nessa situação), 10,8% são militares e estatutários e 33,4% são trabalhadores sem carteira assinada (incluindo-se os domésticos nessa condição). Portanto, quando o IBGE divulga que 55,8% têm carteira assinada, muitos usam esse percentual como se a parcela restante estivesse no mercado informal. Quem recebe o dado bruto, portanto, pode ser levado a concluir que apenas pouco mais da metade dos trabalhadores estaria no mercado formal de trabalho. Ocorre que não faz sentido, para medir o tamanho do mercado de trabalho informal, equiparar "militares e estatutários" à categoria "trabalhadores sem carteira assinada", incluindo ambas em um mesmo segmento do universo da pesquisa. Se o objetivo é saber quantos trabalhadores estão sob a tutela da CLT, o universo a ser pesquisado deve ser restrito àqueles que legalmente deveriam estar sob o regime da CLT e não o estão. É claro que os militares e estatutários não têm (nem nunca vão ter) carteira assinada, porque são regidos por regimes jurídicos próprios, distintos da CLT. Faria mais sentido, inclusive, equipará-los aos com carteira assinada, já que na verdade estão em um mercado formal de trabalho (no caso, o setor público): possuem direitos específicos e contribuem para regimes previdenciários próprios. A situação dos trabalhadores domésticos distorce os dados de formalização do setor produtivo Assim, se retirarmos do universo da pesquisa os trabalhadores da administração pública direta aqui referidos (10,8% da força de trabalho subordinada segundo a mesma Pnad), computando apenas os "com" e "sem" carteira assinada do setor privado (inclusive domésticos), o total de trabalhadores com carteira assinada sobe para 62,58%, o que já representa algo consideravelmente superior à metade. Note-se, portanto, que não se questionam aqui os dados em si do IBGE, mas somente a forma como os mesmos são "empacotados" e apresentados ao público, o que tem gerado distorções de interpretação (inclusive de parte daquela própria instituição, como se percebe nas notas de sua assessoria de comunicação, reproduzidos acriticamente pela imprensa). No entanto, se a questão é examinar mais detidamente o tamanho do mercado formal de trabalho do setor produtivo (justamente para verificar se a competitividade das empresas brasileiras é comprometida em face dos custos trabalhistas), é claramente recomendável retirar do universo da pesquisa da Pnad os trabalhadores domésticos, já que esse tipo de trabalho não faz parte da atividade empresarial. Considerando-se que o serviço doméstico é um dos setores de altíssima informalidade (72,4% sem carteira assinada) e tendo em conta ainda que a força de trabalho doméstico é bastante relevante (11,73% do total da força de trabalho geral e uma em cada quatro trabalhadoras do sexo feminino), ao excluir-se tal segmento do universo da pesquisa, a fatia do número de trabalhadores formais do setor empresarial aumenta consideravelmente: chega-se à conclusão de que 67,88% dos trabalhadores do setor produtivo privado possuem carteira assinada, isto é, pouco mais de dois terços. Ou seja, a alta informalidade dos trabalhadores domésticos combinada com sua considerável participação na força de trabalho geral (e em especial no segmento feminino) distorce os níveis gerais de formalização do mercado de trabalho do setor produtivo, quando os dados gerais sobre formalização são examinados pelo seu valor prima facie. Finalmente, se o objetivo é chegar ao número do mercado formal de trabalhadores subordinados englobando o setor produtivo empresarial e o setor público não sujeito à CLT (militares e estatutários) e excluindo-se os trabalhadores domésticos, atingimos um índice de formalidade de 71,79%, o que não é nada desprezível para um país em desenvolvimento (nas regiões Sul e Sudeste esse índice beira os 78%). E a terça parte dos trabalhadores do setor produtivo privado que ainda está fora da tutela legal, poderíamos atribuir sua sorte à rigidez da legislação laboral? Considerando-se que há diferenças brutais entre os níveis de formalização nas cinco grandes regiões do país e que as obrigações trabalhistas têm natureza federal, os dados da Pnad parecem indicar que economias subnacionais fortes não encontram na legislação trabalhista um empecilho à formalização do contrato de trabalho. E que o grau de formalização do mercado de trabalho está diretamente relacionado às diferenças no nível de desenvolvimento econômico regional e não a um padrão geral da legislação trabalhista. Tanto isto parece lógico que o nível de formalização dos trabalhadores é semelhante ao nível de formalização dos empregadores, quando os dados são estratificados espacialmente. Cássio Casagrande - É doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) e procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro. e-mail: cassio_casagrande@hotmail.com |
Fonte: Valor Econômico |