Num mundo em que já não há separação entre trabalho e vida, a universidade só terá sentido se contribuir para inventar novas formas de intervenção na sociedade. Por Cézar Miglioni
No último final de semana de março, dezenas de professores de cinema ligados ao FORCINE (Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual) se reuniram nas confortáveis instalações da FAAP para debater o ensino de cinema e audiovisual no Brasil. Uma das questões centrais desse último encontro foi a relação entre as universidades e o(s) mercado(s). O debate não é novo, mas nesse momento em que o trabalho, não só no cinema, mas em toda a economia, vem sofrendo profundas transformações, a discussão parece ganhar urgência.
Deslimites do trabalho
De certa maneira estão todos a se perguntar; para onde vão nossos alunos? que tipo de trabalho farão? Estarão preparados para “o mercado”? Apesar das inquietantes perguntas, precisamos dar um passo atrás para refletir sobre elas. Talvez uma das mudanças mais significativas hoje no campo do trabalho seja a dificuldade de separarmos o que é o mercado e o que não é. Trata-se de um evidente desdobramento contemporâneo que tende a borrar as fronteiras entre o que é o dentro e o fora do trabalho.
No Facebookestamos trabalhando ou não? Quando escrevemos uma crítica, de graça, para um blog, quando fazemos um vídeo e colocamos no Youtube, quando conversamos sobre cinema em um cineclube que acontece em um bar, quando mandamos comentários para um jornal, etc. Estamos trabalhando ou não? Em muitos campos o deslimite do trabalho é a regra.
Em recente campanha da Rufflles, a marca de batata frita, quem inventar um novo sabor a ser adotado pela empresa ganhará 50 mil reais e passará a receber 1% do lucro, a empresa pede ainda que a pessoa mande a imagem que o inspirou, facilitando a campanha publicitária que será feita; todos com mais de 18 anos podem participar. Em uma outra companha, a seguradora Heritage Provideroferece 3 milhões de dólares para o pesquisador que inventar um software que permita a seguradora calcular com mais precisão os riscos de saúde de seus clientes. Algo que certamente só pode acontecer com a vigilância da vida, através das redes sociais, provavelmente. Mais diretamente ligado à universidade, recentemente tivemos outro exemplo desses estado demobilização total do trabalhador, como chamou André Gorz. Trata-se do projeto da Rede Globo “Parceiro do RJ”. Neste projeto os universitários de bairros pobres atuam como repórteres, fazendo matérias para o jornal local, trazendo um olhar e uma legitimidade – sobretudo – de quem está dentro. As chamadas imagens amadoras se profissionalizam. No próprio FORCINE, por exemplo, tivemos a apresentação de uma distribuidora de filmes que contrata estudantes universitários para fazer o marketing de seus filmes, dentro das universidades. Claro que quanto mais popular e conectado o aluno for, melhor, mais chances de ele ser escolhido. Nesse caso, o mercado depende do fato de ele ser estudante e estar na universidade. Algo muito parecido acontece com os festivais de cinema que contratam jovens universitários para a produção e divulgação, fazendo com que o público e o trabalhador/estudante venha a se confundir. Uma outra confusão entre o público e o profissional eu ouvi em relatos de pessoas que trabalham em canais a cabo, onde as experimentos com novos programas são mais prováveis. O que faz um bom jovem funcionário que trabalha em um programa do Multishow, por exemplo, é o fato de ele conhecer muito bem o público alvo – ele mesmo – e o universo retratado pelo programa; moda, festas, viagens, etc. Se o jovem for da classe C – frequente eufemismo para falar de pobres consumidores - sua forma de vida terá ainda mais valor e será transformada em informação.
Esses exemplos evidenciam que a universidade não forma para o mercado. Mas que o mercado e a universidade estão em diálogo o tempo todo, sem a separação frequentemente fictícia entre estar estudando e estar trabalhando, no limite, sem a separação entre vida e trabalho.Enquanto no capitalismo fordista os trabalhadores só podia atuar depois de despidos de seus saberes e gestos cotidianos – gostos, hobbies, família, lazer – no capitalismo cognitivo, imaterial, são estes mesmos gestos e modos de vida que tem valor. Como escreveu o Gorz : « O que as empresas consideram o seu capital humano é uma fonte gratuita, uma externalidade, que se autoproduz e que não para de se produzir e que as empresas captam e canalizam a possibilidade de se produzir » (GORZ 2003:19)
A educação continuada, aquela escola que nunca nos abandona, como chamava atenção Deleuze no Post-scriptum sobre as sociedades de controle, é também um mercado continuado, que penetra a universidade e vai buscar os modos de vida que interessam ao mercado. Como dizia Guattari nos idos dos anos 70, “ao capitalismo não interessa mais que o trabalhador saiba fazer, mas que ele saiba ser.” Ou seja, tornar-se um trabalhador valorizado é inseparável de uma produção de subjetividade. Antonio Negri desdobrou tal reflexão falando de uma feminização do trabalhocontemporâneo, que não trata apenas de uma maior presença da mulher no mercado de trabalho, mas de um trabalho em que “os investimentos afetivos da reprodução da comunidade tornam-se fonte de riqueza da sociedade; porque a mercadoria-serviço nada vale se não for sustentada por capacidades relacionais; porque a gestão do intercâmbio vital e a educação dos cérebros tornam-se os desafios centrais de toda a sociedade produtiva.” (Negri) Estamos no limite de um trabalho sem fim, velha característica do trabalho feminino.
A falta de limite entre estudo e trabalho, entre atividade economia comercial e as atividades econômicas de compartilhamento, abarca muitas das atividades posteriores à universidade. O caso da crítica é exemplar. Nos últimos anos, muito por conta da internet, vimos surgir uma geração de críticos que levou o “amadorismo” da crítica para além da universidade em um modelo de profissionalização não-remunerada. Ou seja, aquilo que os alunos faziam quando na universidade se prolonga para o trabalho fora dela. Entretanto, essa prática iniciada na universidade se torna o pilar da inserção no mundo do trabalho remunerado.
Assim, as características do trabalho contemporâneo perturbam na base a pergunta: devemos preparar para o mercado ou não? No limite essa pergunta perde o sentido.
O lugar da universidade
A permeabilidade entra as práticas e invenções da vida universitária e a inserção profissional parece evidente. Por que isso interessa? Primeiramente porque a precariedade, a intermitência do trabalho nos primeiros anos após a universidade – e que talvez não acabe nunca mais para aqueles que desejam o cinema e as artes – é a condições de trabalho no mundo hoje. Se antes o trabalho intermitente era fundamentalmente o lugar dos artistas, hoje ele parece abarcar todos os tipos de inserção profissional em que cada um deve ser um empreendedor de si. Gostemos ou não, é para a precariedade e para a constante demanda de mobilização total que nossos estudantes precisam estar preparados. Mesmo que seja para criticar tal pressuposto.
Nesse sentido, na universidade podemos muito mais do que preparar nossos alunos para o mercado, como se “o mercado” existisse antes daquilo que ele virá capturar na universidade e na vida dos estudantes. O que vemos hoje é que o mercado invade as universidades atrás de inovação e modos de vida. Preparar para o mercado suporia que ele é reconhecível e possui parâmetros duráveis, enquanto, na verdade, a velocidade de suas mudanças é parte de sua enorme força. Nossos alunos devem operar na transformação e para isso a formação não pode se centrar nas demandas de hoje, mas na possibilidade de inventar demandas, nas possibilidades de transitar entre diversas demandas e eventualmente, um dia, fazer uma opção de aprofundamento. Dai nascem os fotógrafos, montadores, distribuidores, etc. O que a pergunta “preparar ou não para o mercado” corre o risco de colocar à sombra é a importância da universidade como espaço de invenção de novas formas de intervenção na sociedade e nos territórios. Formas que passam pela criação entre professores, pesquisadores e estudantes.
Se inventar lugares em que nossas capacidades e talentos sejam exigidos é algo que se faz necessário em lugares com mercados consolidados, como o Rio de Janeiro e São Paulo, o que falar das escolas de cinema e audiovisual que se encontram em Natal, Goiânia, Manaus, Aracaju? A existência dessas escolas é inseparável de uma criação que pense o cinema e o audiovisual para além do que o mercado nos oferece hoje.
Como vemos, todas as vezes que pensarmos dentro da uma dicotomia colocada em termos de ser contra ou a favor do mercado na universidade, estaremos desconsiderando o que já é a realidade da universidade e do mercado. Ou seja, a universidade é atravessada pelo mercado, mas não pode ser pautada por ele, sob o risco de formamos técnicos sem perspectivas, incapazes de efetivamente acompanharem, questionarem, inventarem e se inserirem no mercado.
Nesse sentido, formamos pessoas para a vida e não para uma capacitação imediatista, o que não significa, obviamente, que os estudantes de cinema e audiovisual hoje não terão trabalho, nem que este universo pós-emprego é o melhor dos mundo. Isso significa que não terão renda e que essa perspectiva é apenas para a elite, apta a se organizar na precariedade? Não, mas é aí que parece estar o embate e grande parte da luta. Que a precariedade é o destino do trabalho contemporâneo, não há dúvida. Se nos interessa a inserção democrática nesse campo, nesse mercado, para além de trabalhadores descartáveis, mesmo dos mais pobres que passam pelas universidade, não me parece que com a nostalgia do emprego ou com uma formação pautada pelas demandas imediatistas resolveremos o problema. Não é com nostalgia das linhas de montagem ou dos sindicatos fortes que encaminharemos bem o problema. O desafio não é pequeno, mas a universidade é certamente um lugar privilegiado para inventarmos formas de estar no trabalho e no mundo, de maneira socialmente responsável e ganhando a vida.
Referências:
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
MORINI, Cristina. A feminilização do trabalho no capitalismo cognitivo. LUGAR COMUM Nº23-24, 2008 – pp.247-265
GORZ, André. L’immatériel – Connaissance, valeur et capital. Paris : Éditions Galilée, 2003.
Fonte: Folha de São Paulo, Caderno Mais